Vida nova

Cirurgias de separação de siameses completam 14 anos

// Foi durante a realização de um exame de ultrassonografia que a professora Eliana Ledo…


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Foi durante a realização de um exame de ultrassonografia que a professora Eliana Ledo Rocha Brandão, de 37 anos, teve a maior surpresa de sua vida. Estava grávida de gêmeos siameses. A notícia do médico veio em clima de apreensão, pois o resultado de um exame de pré-natal feito anteriormente havia apontado anomalia na gravidez. A suspeita era a Síndrome de Down. De uma só vez, a professora descobriu que, além de serem gêmeos, os filhos estavam também ligados fisicamente.

“O chão saiu debaixo dos meus pés. Não sabia que no Brasil existiam outros casos. Eu imaginava que o meu era o primeiro. Fiquei preocupada de como buscar recursos para os meus filhos e corri para a internet. Foi quando descobri que o Dr. Zacharias Calil aqui em Goiânia era referência no atendimento a casos de siameses e que já existiam outros casos bem semelhantes aos nossos. Ficamos tranquilos no momento”, revela.

Eliana começou a trocar e-mails com o cirurgião pediátrico Zacharias Calil para esclarecer todas as dúvidas que tinha e também encaminhava tudo relacionado ao pré-natal. Recebeu todo o apoio necessário do médico e do Governo de Goiás e no último mês de gestação decidiu vir para Goiânia. Ela e o marido moram em Riacho de Santana (BA).

A professora foi acolhida na Casa do Interior, mantida pela Organização das Voluntárias de Goiás (OVG), e deu à luz no Hospital Materno Infantil no dia 8 de abril de 2009. Arthur e Heitor nasceram unidos pelo tórax, abdômen e bacia e dividem fígado, intestino, bexiga e o órgão sexual.

Aquele dia seria apenas o começo de um longo processo que já dura cinco anos. De lá pra cá, Arthur e Heitor foram submetidos a sete cirurgias para a colocação de expansores – bolsas de silicone – sob a pele das crianças, o que é necessário para a separação. O último procedimento foi realizado em setembro e a expectativa é de que, se os gêmeos reagirem bem, a tão sonhada separação ocorra em dezembro.

Eliana lembra que durante todo esse tempo houve vezes em que os expansores se romperam e tiveram que ser substituídos. Para cuidar dos filhos, Eliana deixou o emprego de professora na cidade no interior da Bahia, onde vivem o marido e a filha de sete anos, e hoje praticamente mora em Goiânia na Casa do Interior, onde a estada, a alimentação e o transporte são gratuitos.

Quando questionada sobre o sentimento em relação à cirurgia de separação, Eliana demonstra serenidade e resignação. “É uma das cirurgias mais complexas que ele – Calil- vai fazer pela quantidade de órgãos envolvidos. Acredito muito na minha vitória porque já tive muitos sinais de que vai dar tudo certo e o que me deixa mais tranquila é a vontade deles também pela separação porque não é só minha e da minha família. Os dois estão bem cientes da separação e querem porque sentem a necessidade de ir e vir, de terem sua individualidade”, define.

Um é mais agitado e o outro é mais dengoso. É assim que ela descreve o comportamento de Arthur e Heitor, nesta ordem. Eliana mantém contato com outras mães que passaram pela mesma situação, como Simone, mãe de Israel e Levi, de Fortaleza, separados quando tinham um ano e três meses, em fevereiro de 2012, pela equipe de Zacharias Calil no Materno Infantil.

“Ela posta as fotos nas redes sociais e eu fico imaginando como seria também quando os meus filhos estiverem separados. Os filhos dela hoje têm outra vida, de poderem passear, de ir a outros lugares, se desenvolveram, cresceram. Quando a gente percebe que deu certo com outras pessoas a gente também fica otimista. Eu faria tudo novamente. Conviver com eles é muito bom e aprendemos muitas coisas. Tornamo-nos pessoas mais humanas, a nossa família está mais unida. Nada foi por acaso”, finaliza.

Há 14 anos, Zacharias Calil fez a primeira separação de gêmeos siameses da história de Goiás. O cirurgião pediátrico, que ganhou fama internacionalmente, viu o caso em uma emissora de televisão e se ofereceu para ajudar. Larissa e a irmã, Lorrayne, foram adotadas quando tinham apenas um mês de vida pela dona de casa Luciana Gonçalves Cunha Silva, de 42 anos, que também tem um casal de filhos biológicos, uma de 22 anos e outro de 20.

As duas eram unidas pelo abdômen e pela pelve e compartilhavam rins, estômago, bexiga, intestino grosso, uretra, vagina e ânus.”Elas foram uma bênção de Deus que apareceu na minha vida. Na época, chamamos a televisão. Eu nem conhecia o Dr. Zacharias. Apareceram outros médicos que queriam fazer a cirurgia particular. Mas o governo bancou tudinho, os expansores e a cirurgia – financiada pelo SUS”, afirma.

Luciana lembra que a cirurgia de separação foi transmitida por um telão instalado no auditório do Hospital Materno Infantil com mais de 100 pessoas. Do lado de fora, pessoas que viram o caso pela TV e se comoveram faziam vigília e rezavam para que tudo ocorresse bem. “Eu estava com o coração na mão. Quando as vi separadas, chorei de tanta alegria. O Dr. Zacharias tem as mãos abençoadas. E o tanto que eu confio nele?”, comenta.

Lorrayne que teve paralisia cerebral por complicações no parto morreu aos sete anos. Segundo a mãe, ela tinha pneumonia e ficava internada frequentemente, mas “tinha uma vontade enorme de viver”. Logo ela se recuperava. Os médicos estimavam que ela vivesse até os cinco anos.

A irmã, Larissa, cursa o 1º ano do ensino médio e sonha em estudar Medicina, espelhando-se em Calil. “Ele é um grande homem. É um exemplo para todos”, elogia. Vaidosa, a adolescente que não tem a perna direita quer usar uma prótese mecânica comandada pelo cérebro, mas a família não tem condições financeiras de comprar o aparelho.

Calil acabou se tornando um grande amigo da família. “Se a Larissa tem uma gripezinha, eu ligo para ele e ele se prontifica a atendê-la”, revela. Luciana diz que acompanha a espera de Eliana, mãe de Arthur e Heitor, pelo dia da cirurgia de separação. “Eu tenho certeza que ela vai vencer. Ela é uma heroína. Tudo tem seu tempo”, diz.

”Na época, falaram que eu queria aparecer na imprensa”

O nome Zacharias Calil ficou conhecido no País inteiro e também internacionalmente. Não é para menos. O médico atendeu 25 casos de gêmeos siameses e realizou, juntamente com sua equipe, dez cirurgias de separação desde 1999. “Até então, não havia nenhum caso semelhante no Centro-Oeste. A família da Larissa e Lorrayne foi até uma emissora de TV para pedir ajuda. Eu assisti à reportagem e pensei que tínhamos condições de formar uma equipe para fazer a cirurgia. Na época, falaram que eu era louco, que queria aparecer na imprensa”, lembra o médico.

Segundo o especialista, há 14 anos o Hospital Materno Infantil (HMI) – onde foram realizadas todas as cirurgias – não tinha a menor estrutura e estava em condições precárias. Procurei o governador Marconi Perillo, expliquei a situação e ele imediatamente se dispôs a adquirir equipamentos, medicamentos e até aparelho de ar-condicionado para o Centro Cirúrgico. Assim foi possível fazer a primeira grande operação, em julho de 2000, que foi um sucesso. Calil pensou que este seria o primeiro e último caso. A estimativa é que a cada 100 mil nascimentos um seja de bebês que dividem partes do corpo. A maioria morre antes de completar um ano de vida.

O médico estava enganado. Depois de Larissa e Lorrayne, vieram vários outros gêmeos de Recife, Fortaleza, Alagoas, Brasília, Minas, entre outros cantos do País. “Houve uma grande divulgação do nosso trabalho principalmente pela internet. Como o acesso à informação é muito rápido, mulheres com essas má-formações na gestação entravam em contato e viam que o resultado era bom. Nosso índice era de 50% de chance de sobrevida. Nós tivemos e temos ainda o apoio muito grande do Governo de Goiás, principalmente na Casa do Interior, onde essas mães podem fazer todos os exames e ficar hospedadas até dar à luz. Esse é um fator muito positivo já que são pessoas carentes que não têm para onde ir, nem condições de pagar uma passagem de ônibus”, diz.

Zacharias aponta as alterações ambientais como a causa da deformidade na formação dos bebês, principalmente o uso indiscriminado de agrotóxicos nas lavouras. Em um dos casos, os pais das crianças trabalhavam em uma plantação de cana-de-açúcar. Ele diz que não é necessária uma especialização voltada apenas para esse tipo de caso, mas conta que o preparo é fundamental, na avaliação de todos os exames e da anatomia dos pacientes. “Como cirurgião pediátrico estou preparado para isso e tenho as técnicas na cabeça”, afirma.

Separação de Arthur e Heitor

O próximo grande desafio a ser enfrentado por Zacharias será a separação de Arthur e Heitor, que provavelmente ocorrerá em dezembro. A cirurgia considerada de grande porte é missão de uma equipe composta por até 60 profissionais, sendo 15 médicos, com expectativa de 14 horas de duração. Além do suporte necessário para a operação no centro cirúrgico, também é preciso todo um aparato que garanta o bem-estar dos pacientes no pós-operatório, considerado complexo pelo médico.

“Houve vários investimentos. O hospital foi totalmente reformado e foram adquiridos anestésicos e vários equipamentos para aparelhar as UTIs pediátrica e neonatal como respiradores e ventiladores mecânicos porque a criança precisa ficar entubada por muito tempo”, diz.

Calil faz questão de acompanhar o desenvolvimento dos pacientes a quem deu uma nova vida, cria laços afetivos e amizades duradouras com as famílias. Ele vê pelas redes sociais as fotos postadas pela mãe dos gêmeos Israel e Levi, Simone. “Contribuir para quem não andava dar os primeiros passos e ser independente é uma realização profissional. Quando você faz a coisa sem pensar em retorno financeiro, o sucesso é maior”, conclui.